quarta-feira, 29 de abril de 2009

Sonoridades resgatadas em Pensalves

A energia sobra-lhe nos gestos que a idade tornou rotineiros. O corpo irrequieto revela a argúcia com que domina as ferramentas espalhadas pela banca de trabalho. As mãos gastas vão conversando à volta do bombo em construção...
Nem a porta escancarada empresta mais luminosidade à oficina onde executa os procedimentos necessários à construção ou reparação de instrumentos musicais. A chuva que cai lá fora e o frio que se sente cá dentro, não demovem João Batista Almeida de dar voltas e voltas aos aros até que, por fim, assentam na forma circular que os vai sustentar. É na pequena povoação de Cabanes, na freguesia aguiarense de Pensalves, que o artesão de 74 anos abraça este ofício há largos anos. Tudo começou porque, certo dia, queria um bombo para acompanhar a arruada ao povo. “Disseram-me ‘fazes um’. Então, arranjei umas vergas de castanho, um bocado de platex e fiz um bombo. Comecei a fazê-los e nunca mais comprei nenhum.” Em si há um olhar astuto de quem, orgulhosamente, aprendeu sozinho um ofício invulgar. “Vi um bombo velho, desmanchei-o para ver a forma como estava feito e fiz por aquele.” A essa primeira tentativa bem sucedida, João Batista Almeida não parou de arranjar instrumentos: bombos, concertinas e castanholas, mas como um trabalho alternativo, porque sempre trabalhou “as terras”. Contudo, foi graças aos bombos que conseguiu “governar a vida”. O processo de fabrico parece ser encarado com facilidade, à excepção de uma fase. “O que dá mais trabalho é fazer os aros e depois, coser os coiratos [formas triangulares de segurar as cordas]”. Se já tiver os aros feitos, João Batista Almeida assegura que num dia, faz um bombo. “O que demora mais a fazer são os aros, que têm que ser serrados e feitos logo, ainda em verde.” Feitos em negrilho ou canacipe, madeiras que arranja com facilidade pelas matas da aldeia, os aros são alisados com a navalha e a plaina, mas, por vezes, têm que ser serrados numa fábrica em Vila Pouca de Aguiar. João Batista Almeida procura reaproveitar materiais para a superfície cilíndrica do tambor. Por isso, já chegou a utilizar um tambor de uma máquina de lavar a roupa, um barril ou mesmo um bidão cortado. Os únicos materiais que adquire são chapas de alumínio e as cordas, uma vez que até “os coiratos são feitos de botas velhas”. A pele do tambor é devidamente talhada e demolhada antes de ser esticada nas bases da superfície cilíndrica. Uma tarefa que requer “muita paciência” e na qual o artesão conta com a ajuda da esposa. “Às vezes, chateava-me, porque metia de um lado e saltava do outro”, conta o artesão. Posteriormente, João Batista Almeida coloca um dos aros e vira a pele com uma chave de fendas. “Depois meto outro arco em cima, colado com cola da madeira”, revela. As vibrações da pele e do corpo do tambor são as responsáveis pela emissão de som, o que leva o artesão a preferir as peles de ovelha ou de cordeiro. “É que zoam melhor”, justifica. Em tempos, eram utilizadas peles de cão, essas é que “zoam bem”. Na etapa final, são colocadas as cordas e apertadas. Os buracos para que elas passem são feitos com “um espeto quente reluzente”, que está “ao ar da braseira”. “A minha única máquina é o espeto, de resto é tudo feito à mão”, sublinha o artesão aguiarense. As cores dos bombos variam entre o branco e o vermelho, o branco e o azul, o verde ou o preto e são aplicadas com um pincel. Como “não há por aqui ninguém que os faça”, João Batista Almeida é procurado por pessoas “de todo o lado”. Pela proximidade, vêm de Vila Pouca de Aguiar e de Ribeira de Pena, depois também do Douro, do Minho e até de Bragança. Há ainda quem os leve para os grupos folclóricos da Suiça, da França e da Alemanha. O preço do bombo é determinado pelo tamanho, assim pode oscilar entre os 25 e os 100 euros. “Os mais pequeninos são mais ruins de fazer do que os grandes e demoram mais. Um bombo grande verga-se melhor, a madeira não parte tanto”, revela o artesão. De baqueta em punho, João Batista Almeida faz zoar um dos muitos bombos que já produziu, envergando um sorriso de evidente satisfação.

Legado (in)transmissível
Já o seu filho, Delfim Dias Lopes, dedica-se ao conserto e à criação de concertinas. Com um mestre mesmo ao seu lado, não foi preciso outra escola. Foi aprendendo por observação e intuição. “Isto é mais por artesanato e se uma pessoa há-de estar aí sem fazer nada, vai-se entretendo”, justifica. Basta-lhe o ouvido para perceber o que está a soar mal e, consequentemente, a reparação necessária. “Podem precisar de afinações, de botar línguas [teclas], de cobrir foles ou de reparar botões e correias.” O compasso de espera varia conforme o tipo de conserto. “Se for só para afinar, são umas três ou quatro horas; já para pôr as línguas, uma meia hora”, explica. No sossego da tarde, embala uma concertina desarranjada. “Tinha as línguas partidas, depois têm que ser afinadas. O fole está a ser todo forrado de novo para ficar mais duro e bonito. À frente, vai levar um feitio: uma estrela.” Delfim assegura que fazer uma concertina “dá bastante trabalho”, implica “serrar a madeira, passá-la na plaina, lixá-la, tirar todas as medidas certinhas”. Sem qualquer formação na área da música, vai procurando as afinações na banca artesanal para “pô-la a tocar em sol ou em fá”. Sempre que possível, procura recuperar peças de concertinas que se calaram, enquanto “um ferro quente” faz todos os signos decorativos. Aos 41 anos, Delfim intercala esta actividade com trabalhos temporários na Suiça, até porque “lá se vai ganhando mais algum”. Por isso, fazer uma concertina demora-lhe cerca de dois meses, se trabalhasse a tempo inteiro, era suficiente uma semana. “A concertina que foi para a França, vendia por 500 euros, mas era pequenina. Esta será para 1 500.” Os emigrantes costumam ser compradores preferenciais. “Os emigrantes que têm lá ranchos vêm cá muitas vezes, de cada vez levam sempre três a quatro concertinas.” Como instrumento de palhetas livres e fole, a concertina tem nítidas semelhanças com o acordeão, mas uma sonoridade distinta. João Batista exibe os seus dotes musicais em várias concertinas, também elas parte integrante da família. Com discreta reverência, vai pressionando os teclados que flanqueiam o fole e as notas musicais vão povoando a atmosfera numa cadência melodiosa. Ao seu lado, a esposa, Maria Isaltina, entoa cantigas de sempre. “Gosto muito de cantar, já tocar não me puxa”, confidencia. Também Delfim se diz tocador de todos os instrumentos, embora o pai não o deixasse tocar na concertina quando era mais pequeno. “Quando ele [João Almeida] ia com as vacas, era eu que lhe dizia para ir tocar e eu cantava”, conta a mãe. Na verdade, toda a família mantém uma ligação muito estreita com a música. Dois dos quatro filhos trabalham na mesma arte do pai, que “mal se põe a pé, já está a tocar na concertina e acaba de cear, senta-se no escano e toca”, revela Maria Isaltina. Sem pauta formal, mas com uma percepção auditiva invejável, João Almeida procura ouvir as zoadas fortes que se desprendem dos bombos que materializa e retirar das cacofonias das concertinas, uma combinação harmoniosa de sons.
Patrícia Posse in http://www.mensageironoticias.pt/

2 comentários:

tony disse...

Foi com surpresa que deparei com esta Terra "Pensalves(vos),e com imenso prazer ver qualquer coisa escrita da terra em que estive oirto anos ou seja:dso sete aos quinze.O meu pai era guarda florestal chamado Pinheiro. Esdtivemos aí na decada dos anos cinquenta.Daí fomos para Montalegre.Tenho boas recordações.Foi aí que fiz o meu exame da quarta-classe.Tenho grandes recordações de Pensalves e Pedras Salgadas Daqui ,do Algarve Portimão,felicitações e muitos parabéns. AFPinheiro

Anónimo disse...

Lindo. Adorei ler estes textos.Parabéns!